Introdução
O leite é o alimento mais completo, capaz de criar sem qualquer complementação um recém nascido desde o momento em que nasce até aos 6 meses, rico nos mais diversos nutrientes e capaz de conferir sensibilidade aos alimentos presentes na alimentação da mãe assim como alguma imunidade ao meio onde vive. Através da amamentação transmite-se aconchego, protecção, carinho e alimento, é, portanto, natural que com a evolução da agricultura, o homem tenha tentado manter este alimento na sua dieta. Foi há aproximadamente 7500 anos que, com a introdução do consumo de leite de animais domesticados, como a cabra, ovelha, égua, burra e vaca, o homem europeu foi mantendo a actividade da lactase na vida adulta. Essa enzima com função de degradar a lactose, o principal açúcar do leite, está presente na fase inicial do desenvolvimento dos mamíferos na maioria das espécies, mas vai desaparecendo com o crescimento, tendo o homem conseguido causar essa alteração genética mantendo possível, na maioria das pessoas, a actuação da lactase na vida adulta. Essa possibilidade de consumo de leite foi muito importante em épocas de maior escassez por ser um alimento completo e de composição bastante próxima entre espécies, com bons níveis de gordura, proteína, aminoácidos, vitaminas e minerais.
Com o desenvolvimento dos sistemas de refrigeração e pasteurização, a partir de 1960, o processamento térmico do leite contribuiu muito para a sua disponibilização a nível global. Sendo que antes dessa altura o leite era na maioria consumido cru ou fermentado. Este processamento térmico é essencial para proteger os consumidores de vários agentes patogénicos que poderiam causar danos graves quer em indivíduos mais sensíveis (como grávidas e idosos) quer em indivíduos em condição saudável, podendo no entanto, também causar algumas alterações no leite, nomeadamente quanto à biodisponibilidade dos nutrientes.
Proteína
O leite é rico em proteína de elevado valor biológico, podendo ser considerado como uma boa fonte de aminoácidos essenciais. A proteína do leite é composta essencialmente por 80 % de caseína e 20 % de Whey. Estas proteínas sofrem poucas alterações com a pasteurização, sendo no geral alterações estruturais, aparentemente com pouca influência em termos nutricionais e de digestibilidade.
A caseína divide-se em 2 grupos, grupo Caseína A1 e grupo Caseína A2. O grupo Caseína A1 surgiu por mutação a par, em termos temporais, com a introdução da agricultura, sendo que no leite humano não existe este tipo de caseína, apenas o tipo A2, que era também o originalmente existente nos bovinos. Tem se verificado alguma relação entre o consumo do grupo Caseína A1 com a inflamação da mucosa intestinal, sendo esta particularmente notória em pessoas com doença celíaca. Alguns estudos mais recentes, no entanto, parecem indicar que a inflamação que se verifica com o consumo de caseína pode ser uma consequência da inflamação causada pelo glúten e não a causa da inflamação.
Ao ser consumida, a caseína liberta no nosso organismo um péptido opióide bioactivo (BMC), que se considera estar relacionado com a ligação materno-fetal na fase neonatal, no sono e no desenvolvimento do tubo digestivo. Alguns destes compostos de origem bovina foram detectados no plasma sanguíneo de bebés humanos amamentados em exclusivo mas dos quais as mães consumiam leite de vaca, encontrando-se também no tubo digestivo humano após consumo de leite de vaca. Estes compostos têm influência nas bactérias do tracto digestivo e no tempo de digestão, tendo sido associados com alguns distúrbios gastrointestinais e nomeadamente com intolerância à lactose.
IGF- 1
O leite de vaca é rico em várias hormonas e factores de crescimento naturalmente presentes. O factor de crescimento semelhante à insulina (IGF-1) é um destes factores, estando os valores de IGF-1 livres relacionados com o consumo de leite de vaca nesses indivíduos. Esta proteína é um mediador da acção da hormona de crescimento, característica importante no crescimento na fase lactente dos mamíferos e no seu desenvolvimento na vida adulta, pela estimulação do crescimento de todas as células no corpo, tendo-se encontrado relação entre o consumo de leite na fase infantil-juvenil e a altura do indivíduo na fase adulta, no entanto, por consequência, o consumo na fase adulta juvenil-adulta tem sido relacionado com diabetes, doença cardiovascular, cancro colo-rectal e doenças degenerativas.
Os alimentos que contribuem para os valores elevados do IGF-1 na alimentação moderna ocidental, resultando num aumento dos valores base de insulina, são os lacticínios, cereais e açúcar, alimentos cujo consumo aumentou recentemente na história do ser humano e para o qual o genoma humano ainda não se adaptou.
microRNA e mTORC1
O leite, sendo um alimento que pretende promover o desenvolvimento da cria de acordo com as características da sua espécie, funciona como um sinalizador de microRNA – um programador do crescimento do indivíduo. O microRNA tem como função o regulamento genético e sabe-se hoje que ingerimos e absorvemos esse sinalizador através do leite de que consumimos, com efeito na expressão génica. Ou seja, o leite de um mamífero tem influência na expressão do gene do mamífero que o consome, sendo que neste caso, não é a própria cria, mas sim leite de vaca em humanos.
Este microRNA tem efeitos diversos em humanos, podendo influenciar o desenvolvimento ósseo, o risco de cancro ou a função auto-imune. Esta função do microRNA é, no entanto, reduzida ou mesmo eliminada nos lacticínios fermentados.
O mTORC1 é um agente mediador que relaciona aminoácidos, factor de crescimento e utilização de energia no nosso organismo, estando relacionado com o stress, a lipogénese e a longevidade no geral. Cada mamífero tem uma magnitude de sinal deste mTORC1 específico para a espécie, determinada pelo crescimento e peso adulto da espécie em causa, sendo que o leite com maior quantidade de proteína corresponde a espécies com maior velocidade de crescimento e o teor de leucina tem a relação inversa, estando o teor em leucina no leite relacionado com a duplicação do peso ao nascimento. Esta relação entre o teor de leucina e proteína total é, assim, muito maior em vacas do que em humanos, pois as vacas são animais com menor velocidade de duplicação de peso e maior peso final. O consumo de leite de vaca por humanos leva assim a um aumento da acção do mTORC1, aumentado a proliferação celular, o seu crescimento e, pode, consequentemente, reduzir a longevidade.
Tanto o mTORC1 como microRNA e o IGF1 referido acima são de grande importância para o desenvolvimento neonatal, e conhece-se o seu efeito pelo consumo de leite de vaca em humanos desde 1928, No entanto, apenas recentemente tem sido estudado o seu efeito num consumo a longo prazo.
Cálcio
O consumo de leite tem sido incentivado pelos mais diversos órgãos de comunicação, associações e outros que tais, pelo elevado teor em cálcio e consequente redução da osteoporose. No entanto, estudos recentes, não têm encontrado relação entre o consumo de cálcio proveniente no leite nas doses recomendadas e a redução de fracturas, portanto, incentivar o consumo de leite para reduzir a osteoporose é algo que não está de todo confirmado.
Lacticínios fermentados
A fermentação do leite é a forma mais ancestral do consumo de lacticínios. A fermentação além de permitir uma maior conservação, resulta numa redução do teor de lactose, o açúcar do leite, tornando-o num alimento mais low carb que leva a um menor aumento do valor de insulina base.
A fermentação do leite, possivelmente pela hidrólise dos lípidos e das proteínas, aparenta ter uma função protectora do sistema cardiovascular, nomeadamente pelos queijos, iogurtes e kéfir. Os lacticínios fermentados actuam como estimulantes do sistema imunitário contra infecções, alergias ou cancro e alteram a flora intestinal, influenciando o metabolismo e digestão.
Conclusão
O consumo de leite é bastante recente na história da evolução humana, estando a causar alterações no nosso genoma que nos irão definir enquanto espécie e impossíveis de prever pela dificuldade em serem analisadas individualmente. O que antes se considerava como benéfico, como menor mortalidade infantil, maior crescimento e início da puberdade, pode na verdade ter consequências adversas na vida adulta. O consumo de leites adaptados infantis baseados em leite de vaca desde uma idade precoce ou até o consumo de leite materno nos quais a mãe consome leite de vaca leva a alterações no genoma da criança desde o início da vida e até antes do seu nascimento.
O leite gordo, lacticínios gordos e fermentados não aparentam estar relacionados com doenças cardiovasculares, existindo sim indícios de uma relação inversa, ou seja de que estes possam ter um efeito protector. Estes, principalmente quando provenientes de animais de pasto ou de origem biológica, podem ser interessantes no aumento da resposta imunitária e protecção contra cancro.
Nota da autora:
Neste artigo não foram mencionados os casos específicos de pessoas intolerantes à lactose e com alergia à proteína do leite, sendo que ,para esses indivíduos, o consumo de lacticínios é, obviamente, a evitar, podendo optar-se por outros produtos, em alguns casos por lacticínios fermentados e/ou de outras espécies com menor potencial alergénico (cabra e ovelha, por exemplo) ou por produtos de origem vegetal.
Foram utilizados artigos publicados em revistas científicas considerados credíveis, não invalidando uma consulta individual para aprofundamento do tema.
Bibliografia: